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Edição 114 > Promoção da saúde e ações preventivas multisetoriais
Promoção da saúde e ações preventivas multisetoriais
Diferentemente de muitos países mais ricos, o Brasil conseguiu, a partir da redemocratização, consolidar um sistema de saúde universal, público e de abrangência nacional: o SUS. Mas, ainda é preciso ampliar os investimentos, melhorar a qualidade de seus serviços e aprimorar o acompanhamento preventivo, responsável por garantir melhor qualidade de vida à população e a diminuição no número de atendimentos hospitalares

Diante da atual agenda do Congresso Nacional - em que se destaca a aprovação da Emenda Constitucional nº 29 -, o momento é mais do que oportuno para se falar sobre saúde, especialmente sobre promoção e ações preventivas. Identifico no convite para escrever este artigo uma oportunidade singular de mergulhar nas preocupações que norteiam as ações de nosso primeiro mandato como deputado federal. Registro a dificuldade política que encontramos para priorizar esse tema, mesmo diante da demanda que vem da população mais carente do nosso país. Sinto a necessidade de fazer inicialmente uma abordagem teórica, sem a qual ficam encobertas as causas fundamentais que fragilizam a saúde de nossa gente.
A saúde pública no Brasil
O sistema que se baseia na exploração do homem pelo homem e que elege a produção de mais-valia como objetivo final é produtor de doenças. Isso porque ele alimenta a fome de uma parcela da população e financia a abundância, o supérfluo e o desperdício da outra ponta, nega o saneamento básico aos que moram na periferia e a educação de qualidade nas escolas públicas. Ele condena ao desabrigo e a uma condição desumana muitos de nossos semelhantes.
Não quero simplificar tudo com a afirmação de que a culpa é do sistema e fugir de minha responsabilidade como pessoa, como parlamentar e como representante de um partido que historicamente vem lutando para construir uma sociedade mais justa. E nesse contexto está o direito de todos os brasileiros ao acesso a uma saúde de qualidade, que inclui a promoção e a prevenção de doenças.
Para entender melhor o que isso significa, faz-se necessário conhecer um pouco da história da saúde pública no Brasil. Uma história que tem um marco: antes e depois do Sistema Único de Saúde (SUS). Até o início da década de 1990, vivíamos no modelo absolutamente hospitalocêntrico, ou seja, todas as demandas de saúde da população esbarravam no hospital. É claro, ele é um espaço de saúde, um local para recuperação da saúde do cidadão, mas se tornaria profundamente insuficiente se tivéssemos que ali fazer, além da recuperação, a porta de entrada do sistema, a promoção da saúde, a prevenção de doenças. É absolutamente impossível. Por isso funcionou tão mal ao longo de tantos anos. A população mais pobre não tinha acesso porque grande parte desse sistema centrado no hospital é baseada no lucro. Uma parte o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) bancava. Os de posse compravam o acesso e os que não tinham dinheiro ficavam fora do sistema, pagando às vezes com a vida.
Com a criação do SUS essa realidade inicia uma transformação. Ele nasce de uma luta resultante do descontentamento da população, da organização do povo e de vários segmentos da sociedade que passaram a cobrar um modelo de saúde mais humanizado, que pudesse abranger toda a população do nosso país.
A 8ª Conferência de Saúde culminou com uma proposta consensual pela criação de um sistema único de saúde do país e a Constituição de 1988 o consagrou quando o aprovou. Com isso, passou-se a trabalhar esse processo de inversão, saindo da assistência centrada no hospital para um modelo que priorizasse a atenção primária à saúde e o posto de saúde como porta de entrada do sistema. O posto ficaria perto do povo, poderia ser descentralizado para as cidades e os municípios do país.
Surgiu daí o primeiro processo de municipalização da saúde com a criação dos três níveis de atenção: primário, secundário e terciário. Na atenção primária, ficou a promoção da saúde e prevenção das doenças. Esse processo, mesmo ainda muito lento e insuficiente para os padrões necessários em um país continental como o Brasil, é o modelo que tem como foco manter o cidadão sadio. A prevenção das doenças se dá por meio de um processo de educação em saúde, onde o cidadão passa a conhecer as causas dos agravos, para que a partir daí possa se prevenir de determinadas enfermidades.
A secundária seria a parte hospitalar, o internamento em hospitais comum entre nós, aqueles das médias cidades interioranas e em algumas capitais. Também está nesse nível de atenção a rede de laboratórios, exames de auxílio ao diagnóstico. Já a atenção terciária seria a chamada média e alta complexidade, envolvendo grandes procedimentos como as cirurgias neurológicas, UTIs e outros. Também é bom que se saiba que o SUS prevê as competências dos entes federados, a União, os estados e municípios - autônomos a partir da Constituição de 1988.
Uma nova forma de assistência
Temos de relatar um pouco como se deu e como está se processando a inversão do modelo de assistência. Primeiro, tínhamos uma rede de postos de saúde insuficiente para atender a demanda e garantir o atendimento a todo cidadão. Como ter acesso a um posto de saúde, sem tê-lo fisicamente- Junto com essa mudança, surge o Programa Saúde da Família, que é um marco na história da saúde pública. O PSF propiciou, na unidade básica de saúde, perto da população, ter o médico, o profissional de enfermagem, o dentista, para atender às principais demandas em saúde. E, além disso, exames de laboratórios, acesso ao internamento, por meio da referência da unidade básica de saúde, que passou a ser o regulador dos outros níveis de atenção.
Isso não ocorreu por acaso. Quando o SUS foi pensado na sua conformação teórica foram imaginados os três níveis de assistência, colocando a atenção primária como destaque, pois ela regularia o encaminhamento ao nível secundário ou terciário no sistema de referência. Esses níveis devolveriam o paciente pelo sistema de contrarreferência à unidade básica de saúde, que vai tomar conta da saúde de cada cidadão. É perfeita a proposta, embora não esteja em sua plenitude. Mas há inúmeras vantagens da atenção primária, como o acesso mais fácil e um custo reduzido.
Quem se lembra do modelo anterior, na época do Inamps- O custo era imensamente superior. Vivenciamos isso no passado, verdadeiros ralos do dinheiro público através de hospitais, muitos deles geridos por entidades privadas, que prestavam serviço ao SUS, e não eram raras as denúncias de corrupção e desmandos com dinheiro público.
Os indicadores de saúde pública no Brasil mostravam claramente a falência desse modelo. Os altos índices de mortalidade materna e infantil, a falta de acesso ao diagnóstico do câncer e a assistência à saúde de um modo geral demonstravam esse modelo ser para poucos e não para a população brasileira, como se propõe o SUS.
Além disso, na atenção primária foi possível estabelecer na unidade básica a vigilância em saúde. Essa é outra questão diferente, por exemplo, da Europa. Temos uma carga de doenças agudas muito presente: endemias, zoonoses, doenças infecciosas. Isso requer, na realidade, uma atenção redobrada. Temos ainda a presença muito forte de leishmaniose, calazar, dengue, o que exige uma atenção descentralizada. A atenção básica albergou essa área muito bem. Mesmo que ainda não tenhamos debelado a dengue e o calazar. Mas no caso do sarampo, da poliomielite são inquestionáveis os avanços registrados. Se olharmos para a Europa hoje, vemos um surto de sarampo, no continente mais velho, mais desenvolvido. No Brasil, apesar das falhas - ainda temos um sistema que não atende a todas as demandas da sociedade -, avançamos muito no controle dessas doenças.
Na atenção primária, a competência é dos municípios. É uma questão que merece reflexão. Eles são os entes mais pobres dentro da distribuição tributária - não dá para descontextualizar da distribuição tributária do país -, e respondem pela saúde em todos os níveis. Isso requer custos elevados, pois a tecnologia em saúde se renova com uma velocidade muito grande. Para se incorporar essas mudanças e garantir o acesso da população a esses avanços, é preciso adquiri-los no mercado. No mercado capitalista não há nenhum controle - muito pelo contrário, ele se impõe.
É importante colocar que o ente federado município é o que tem menos recursos, porém é o que toma conta do nível mais importante de atenção. Mesmo para aqueles, dentro da lei, obrigados a gastar 15% de toda a sua receita bruta com saúde, isso é pouquíssimo. O destinado aos municípios na distribuição tributária é insuficiente também para que todas as demandas da sociedade, não só em saúde, sejam atendidas dentro do que é direito social, do que é obrigação do poder público. Portanto, é outro fator que destoa da proposta teórica, que não se coaduna com o tamanho da responsabilidade do gestor público municipal em relação à saúde do seu povo.
Maior interação entre diferentes setores
Dentro do processo de promoção da saúde e prevenção das doenças, na atenção primária, temos alguns fatores que dificultam. Um deles - que vivenciei como médico do PSF de Paracuru, no Ceará, durante quatro anos - é a falta de uma intersetorialidade maior. Um exemplo é a gravidez na adolescência. Cada vez mais nos deparamos com meninas de 12, 13 e 14 anos com gestações não planejadas. É uma falha do sistema de saúde, do poder público e também do sistema de educação. Porque eles não frequentam as unidades básicas de saúde, o PSF.
É muito difícil, mesmo numa busca ativa, por meio de grupos de jovens, trazê-los para as unidades de saúde. Trazemos algumas demandas reprimidas de diabéticos e hipertensos, mas os jovens não adoecem, o que eles têm é uma virose, uma gripe. Por isso, vão pouco ao consultório médico. Porém, todos os dias estão no banco da escola. Aí é que está uma falha grave no modelo educacional do país, que não trabalha bem a educação em saúde, pois educação é um processo que deve envolver e garantir ao cidadão o conhecimento não só da Física, Português, Matemática, mas também de saúde, tanto no aspecto da promoção como da prevenção. A equipe do PSF da área precisa trabalhar melhor com a educação para poder garantir esse tipo de informação e prevenir a gravidez nessa faixa etária, como também as doenças sexualmente transmissíveis. A intersetorialidade precisa ser reforçada e melhor trabalhada.
Mesmo assim temos avançado. Para não ficar apenas na crítica, podemos citar exemplos pródigos: a população brasileira envelheceu em 30 anos o que a França levou quase 200 anos. Isso é um sinal de avanço que se credita ao SUS em decorrência da melhoria do conhecimento da população e do melhor acesso que ela tem aos serviços de saúde. Precisamos dar mais volume a isso, pois para se garantir promoção da saúde, temos de garantir hábitos saudáveis, como alimentação, quebra do sedentarismo com a realização de atividades física regularmente, fim do tabagismo, o controle da ingestão de álcool, principalmente na juventude, que hoje é um problema gravíssimo no nosso meio.
Outra questão que precisamos trabalhar é o pré-natal de qualidade, que vai resultar não só na redução da mortalidade materna, mas também na do concepto. O acesso da gestante ao pré-natal é um dos fatores importantes na redução mortalidade infantil. Nessa questão da promoção da saúde e prevenção de doenças, temos importantíssimos aliados: os agentes comunitários de saúde e os agentes de endemias. Depois do PSF, o maior avanço que tivemos do ponto de vista da saúde pública no Brasil foi a criação dessas duas categorias. Absolutamente descentralizadas para os municípios, nas unidades básicas, sob a gestão da atenção primária, tendo como alcançar o problema no município, que é o ente mais concreto da nossa federação.
O PSF vai buscar a demanda reprimida, ver o diabético que não está tomando seu medicamento, descobrir o hipertenso que ainda não iniciou seu tratamento e que corre um sério risco de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Tudo isso é promoção e prevenção. Nesses últimos 22 anos, devemos isso ao SUS.
Diante de tantas coisas ainda por atingir, já temos muitos avanços creditados ao Sistema Único de Saúde. É comum ouvirmos não só na mídia, como até no meio da população, com razões fortes em alguns casos e, em outros, por influência de críticas cáusticas e até excessivas de que o sistema é um caos. Discordo desse conceito. Primeiro, porque se nos ativermos à análise de como era a saúde no país há pouco tempo, vamos verificar que ocorreram mudanças substanciais e profundamente fortes no nosso sistema de saúde. É claro, temos gargalos muitos evidentes, como problemas nas emergências, UTIs, nas cirurgias eletivas. Mas muito do que está acontecendo se deve ao fato de falharmos na promoção da saúde e na prevenção de determinadas doenças. Ainda trabalhamos de forma deficiente esse conceito e prática. Se vamos ouvir o povo na sua sabedoria, ele diz: -É melhor prevenir do que remediar-. Esse ditado popular é basilar. Na sua sabedoria, o povo dá essa lição.
Ainda enfrentamos dificuldades nas unidades básicas como financiamento insuficiente, falta de profissionais médicos, que se concentram mais nos grandes centros em busca de especialidades, pois ainda não há na formação médica um convencimento maior para que se especializem em saúde da família. O que é mais complexo do que cuidar de pré-natal, parto, puericultura, atenção à criança em seu primeiro ano de vida, depois na infância, no jovem adolescente, idoso, hipertenso e diabético- Esse rótulo de gradação de complexidade é inadequado, contribui para poder tipificar a atenção primária, onde estão a promoção e a prevenção de doenças, como se fosse uma coisa de baixa complexidade. Precisamos mudar esse conceito. A mudança não ocorre de uma hora para outra, num estalar de dedos. Isso se modifica com ações que venham do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais e Municipais. Precisamos continuar nossa tarefa, resolvendo esses problemas. Mas vai depender do nosso poder de convencimento.
A população precisa ser informada sobre a questão do mercado da saúde. No passado, saúde era tratada como uma mercadoria. É o que o sistema capitalista faz com muita abrangência, transforma tudo em mercadoria, porque sustenta o lucro - razão desse sistema. Quem tem poder aquisitivo compra. E alguns vão vender: são aqueles que têm a informação para poder se transformar em mercantilizadores da saúde pública. Há um saudosismo muito grande. Embora tenha diminuído, ainda há os que amealham lucros exorbitantes com a saúde do povo, do pobre, da mulher, da criança, do idoso. Hoje, essa prática ainda atrapalha e muito os avanços no SUS. Há quem se sinta bem em manchar a imagem do SUS, exatamente para desacreditá-lo na população para que ela compre planos, seguros. Não podemos descuidar disso, porque é a lei do mercado. Isso acontece com a educação e com a saúde. Só não acontece numa escala maior porque o SUS não é nicho de mercado.
Outro ponto que precisamos cuidar é a gestão. A gestão é um fator importante para ser relegada a segundo ou terceiro plano. Se numa escola, preciso ter alguém especializado para tomar conta de algum equipamento, para aplicar o que o conhecimento oferece, e ter um bom resultado, imagine na saúde. Não podemos improvisar e ainda há muita improvisação em relação à gestão. Defendemos que a especialização em saúde da família e comunidade seja massiva para os profissionais da atenção primária, para que estes, preparados, possam trabalhar melhor a recuperação e também a prevenção e promoção da saúde.
Quando estou trabalhando, reduzindo o adoecimento, deixo o cidadão com melhor qualidade de vida, evito as faltas ao trabalho e, consequentemente, a redução de renda. Enfim, esse trabalho de evitar a doença no cidadão é fundamental para tudo, para o custo do sistema, que é caríssimo. Por isso, é importante aprimorarmos a gestão, e assim podermos cumprir o papel, que é o da atenção primária à saúde e também dos outros níveis de atenção. Sempre lembrando que qualquer dificuldade, baixo desempenho nesse nível de atenção, compromete os demais. Teoricamente, uma equipe de PSF, deveria resolver de 80% a 85% das demandas que chegam, deixando no máximo 20% para outros níveis de atenção. Porém, isso não acontece em decorrência dos muitos problemas, resultando na superlotação das emergências, das UTIs.
O SUS tem a melhor proposta do mundo, daí a luta de sua militância para transformá-lo em patrimônio da humanidade, pois poucas nações do planeta, muito mais ricas que nós, ousaram implantar um sistema com essa abrangência. Ele busca universalizar com equidade e participação popular. Em comparação com os países mais ricos - inclusive aqueles nos quais nos espelhamos na construção teórica do SUS -, observamos que avançamos muito mais na proposta. Em pouco tempo, temos muitos avanços, principalmente se olharmos para um passado não tão distante. Os resultados obtidos devem servir de fator estimulante para continuarmos nossa tarefa da reforma sanitária brasileira, que está inconclusa. É preciso continuar avançando. Esse é o desafio. E esse desafio é permanente: melhorar cada vez mais e em menor tempo possível a qualidade da atenção a saúde pública no Brasil.
*João Ananias Vasconcelos Neto é deputado federal do PCdoB-CE.