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Edição 114 > O papel do Estado no financiamento da saúde
O papel do Estado no financiamento da saúde
Apesar de avanços observados nos últimos anos, a saúde no Brasil continua sofrendo as graves consequências de seu subfinanciamento. Neste artigo, a autora defende que o direito social à saúde seja tratado de forma global e integrada e aponta algumas medidas que podem ajudar a superar o gargalo da falta de recursos, entre elas a regulamentação da emenda 29, novas fontes de financiamento e formas de tributação e a diminuição dos subsídios destinados ao subsistema privado de saúde

A Reforma Sanitária Brasileira assentou sua construção em intensos debates conceituais e de análise da realidade social e de saúde do povo. A expressão constitucional vertebra-se no Sistema Único de Saúde (SUS), que compõe um grande sistema de proteção social - a seguridade social.
Em um salto atrás na história - sob a ótica dos direitos sociais e humanos -, observamos um sistema de saúde excludente e iníquo, pautado na concepção de seguro, estabelecido na relação direta entre contribuição, vínculo trabalhista e direito à assistência, deixando à indigência parcelas expressivas da população. O Estado autoritário agravou imensamente o quadro de exclusão e desigualdade, também pelo agravamento das condições socioeconômicas do país, com enorme concentração de renda e direitos.
A explosão da redemocratização fez emergir no cenário político o potencial reprimido de vozes, organizações e participação popular, que permitiu imprimir na Carta Magna direitos e deveres do Estado brasileiro até então ausentes.
No campo do direito à saúde foi possível avançar em formulações que, em longo processo de elaboração, puderam ser mais bem conhecidas e compreendidas. A universalidade contrapõe a focalização e a supera na batalha constitucional dando ao Estado o papel que lhe cabe: o de garanti-la. A esta podemos chamar a maior conquista democrática. Ao setor privado, filantrópico ou não, deveria caber um papel complementar.
Para dar consequência às responsabilidades assim estabelecidas, os recursos são, no entanto, imprescindíveis.
O SUS está inserido na seguridade social, juntamente com a previdência e assistência social. Os constituintes ampliaram a cobertura, mas responsavelmente multiplicaram as fontes de receita:
- Orçamentos Fiscais da União, estados, Distrito Federal e municípios;
- folha de salários;
- Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social);
- CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido); e
- receita de prognósticos.
Também foi superada a ilusão de que bastava um eficiente ministério ou eficientes secretarias de saúde - também importantes -, mas ficou clara a determinação social no processo -saúde versus doença-.
Assim, é essencial que se desenvolva uma política de Estado, integradora das diversas pastas para tratar o cidadão por inteiro. Supressão da pobreza, alimentação adequada, ambiente saudável e saneado, lazer, autoestima, autoconhecimento, saber, informação. O reconhecimento da determinação social - subjacente às desigualdades das populações em relação à exposição a riscos, acesso e uso de ações e serviços de saúde - inspirou a tese -saúde em todas as políticas- adotada recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A Constituição foi promulgada em 1988 e, a partir de 1991, a contrarreforma se instalou com grande ofensiva contra as garantias constitucionais, mas principalmente promovendo grande asfixia financeira. As mudanças de governo na década de 1990 trouxeram a implementação da política do -estado mínimo-, a obediência às orientações do Banco Mundial (Structural Adjustment Programs/1993) e uma política macroeconômica restritiva e de financeirização dos recursos públicos, como instrumento de sobreposição do mercado. Nesta década, vimos a desaceleração da economia e, segundo o Atlas de Exclusão Social (POCHMANN, Marcio, Cortez-2004), houve aumento médio anual de ocupações informais de 2,4% ao ano, desemprego médio anual de 13%, brutal perda de participação dos salários na renda nacional de 45% para 35%, 1/3 da carga fiscal a cada ano comprometida com o pagamento da dívida pública. Todos estes fatores influenciaram negativa e fortemente a arrecadação previdenciária e da seguridade social.
As consequências dessa política geraram aumento da resistência social e sua expressão parlamentar levou à movimentação suprapartidária e, em 2000, foi historicamente marcada uma importante conquista: a vinculação constitucional do orçamento da saúde - Emenda Constitucional n. 29, até hoje pendente de regulamentação. No entanto, não cessam as lutas por financiamento.
As lutas por dinheiro novo na saúde levaram - num determinado momento - à criação da CPMF, inicialmente desviada de suas finalidades. E hoje a sociedade reclama a adoção de uma política estável de financiamento do setor conjugada com o uso lícito e eficiente dos recursos. Mesmo com uma injeção de recursos maior, e com avanços de cobertura, a saúde continua escandalosamente subfinanciada.
Não cabe a este pequeno texto a análise de outras áreas das políticas públicas e a suficiência de seus orçamentos, apenas precisamos estabelecer bases comparativas para melhor parametrizarmos a situação do financiamento da saúde em termos percentuais e absolutos diante das necessidades e obrigações constitucionais.
A tabela 1 demonstra o que crescemos comparativamente à Educação e Ciência e Tecnologia nos últimos 10 anos.
A saúde e a seguridade social
Desmentindo as frequentes manchetes de jornais, debates de -especialistas- na TV, artigos, pressões internacionais para as nossas reformas, a seguridade social não tem déficit. Basta observar as tabelas 4 e 5, a seguir:
Os modelos de financiamento dos sistemas de saúde expressam inequivocamente suas bases societárias. Em linhas gerais, os sistemas de saúde e seus fundos podem ser agrupados em três tipos: 1) universais; 2) meritocráticos (baseados em seguros sociais); e 3) residuais (baseados na lógica de mercado). No entanto, ao longo do tempo, esses modelos passaram por inúmeras reformas e adquiriram traços comuns. O principal ponto de convergência dos sistemas nacionais de saúde é a crescente intervenção estatal, evidenciada pelo aumento dos gastos públicos em relação às despesas totais.
Receitas e despesas da seguridade social 2008-2010 (em R$ milhões)
Evolução da Proporção de Gastos Públicos em Relação ao Total de Gastos com Saúde de Países Selecionados (1960 a 2008)*
O aumento da proporção dos gastos públicos ocorreu em momentos distintos entre países europeus e nos Estados Unidos (EUA). O Reino Unido que realizou a reforma de seu sistema de saúde no início dos anos 1950 do século XX já apresentava uma alta proporção de gastos públicos (85,2%) em 1960. Em países como a França (com seguros sociais universalizados progressivamente), a inflexão em direção ao aumento dos gastos públicos é mais tardia. No Brasil, a proporção dos gastos públicos, entre os anos de 1995 a 2009, foi similar à dos EUA (tabela 6).
Segundo a OMS, sistemas de cobertura universal, como os brasileiros, demandam 6,5% do PIB, mas no Brasil, somando-se os gastos das três esferas, chega-se a 3,7% - um valor pouco superior à metade do necessário. Mesmo considerando os países da América, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPS), os gastos públicos realizados no Brasil (3,6%, em 2006) estão abaixo das despesas públicas em Cuba (10%), EUA (7,8%), Canadá, (7,5%), México (4,9%), Argentina (4,6%), Chile (4,0%), Uruguai (9,0%).
Observando a tabela 7, para cumprir o que orienta a OMS o SUS precisaria de R$ 209 bilhões, o que representa 64,5% a mais que seus atuais R$ 127 bilhões de 2009.
O dado importante e que deve nortear nosso trabalho estratégico é a visível inversão público/privada dos gastos. Agrego a esta tabela o dado da Receita Federal que estima a perda de R$ 13,5 bilhões em arrecadação para 2011 (tabela 8). Chama a atenção que a soma das diversas renúncias tributárias, das pessoas físicas e jurídicas - que acabam favorecendo a saúde privada - superam o que o governo federal gasta com a atenção básica em saúde.
A Emenda constitucional 29
A Emenda constitucional 29 continua sendo uma importante conquista da sociedade brasileira. A proposta original vinculava os recursos da saúde a 30% do valor das contribuições sociais, posteriormente às receitas correntes e se manteve vinculada ao PIB nominal, estados, municípios e Distrito Federal, com percentuais sobre seus tributos próprios. As receitas da União mantiveram-se estagnadas na média, exceto em 2009, quando superou o destinado em 1995. Os municípios, em geral, cumpriram o percentual que lhes cabe, muitas vezes acima dos 15% estabelecidos. Vários estados cumpriram, mas muitos, além de não cumprirem, utilizaram os recursos para outras finalidades que não as ações e serviços de saúde. Por isso, há necessidade urgente de sua regulamentação.
A votação para sua regulamentação no Senado Federal levou à vinculação dos recursos a 10% das receitas correntes brutas, modificada na Câmara voltou à vinculação com o PIB nominal, faltando apenas um destaque para a finalização do processo e retorno ao Senado. Este destaque é o que determina a criação ou não de nova Contribuição Social para a Saúde: a CSS.
Recursos mínimos para a saúde em 2011-08-2011
Critério Base cálculo Resultado Diferença para a LOA 2011
Previsão da Lei Orçamentária Anual Empenhado no ano anterior acrescido da variação nominal do PIB de 2010 Dotação do MS= R$ 77,352 bilhões. Parcelas a deduzir = R$ 5,6 bilhões de EPU + R$ 0,050 bilhão de encargos da dívida.Resultado em ações de saúde = R$ 71,7 bilhões -
Proposta aprovada pelo Senado Federal Prejudicado pela Câmara dos Deputados 10% da Receita corrente bruta (3) Previsão de receitas correntes da LOA 2011, com a reprogramação do Dec. 7335/2011, resulta em R$971 bilhões. Resultado em ações de saúde = R$ 97,1 bilhões R$ 26,4 bilhões
Proposta contida no PLP 306/08, com a criação da CSS. Pendente votação do último destaque Empenhado no ano anterior acrescido da variação nominal do PIB de 2010 + CSS (4) Previsão da LOA 2011 = R$ 71,7 bilhões + receita total da CSS = R$ 14,1 bilhões. Resultado em ações de saúde = R$ 84,8 bilhões R$ 13,1 bilhões
Proposta contida no PLP 306/08, com a rejeição da CSS. Empenhado no ano anterior acrescido da variação nominal do PIB de 2010, exatamente como é hoje Previsão da LOA 2011 = R$ 71,7 bilhões Resultado em ações de saúde = R$ 71,7 bilhões -
Mesmo com a importante regulamentação da Emenda 29 - pois será finalmente definido o que são ações e serviços de saúde, gerando a obrigatoriedade de cumprimento do percentual de recursos constitucionais das três esferas públicas de poder, incrementando o volume de recursos -, estaremos com a saúde subfinanciada, pois as necessidades, como já demonstramos, são bem maiores e porque não está isolada da visão global de país, de cidadania e do papel do Estado brasileiro (tabela 9).
A universalidade e a integralidade ainda não estão garantidas, mesmo reconhecendo os avanços de cobertura e de resultados do SUS que defendemos. Nossa soberania também se expressa na nossa independência em insumos em saúde. Ainda não podemos fazê-lo por falta de investimentos. Na recente política industrial anunciada, nem tangenciamos esta possibilidade e continuamos importando 100% de insumos em biotecnologia. O acesso a medicamentos é uma face cruel da desigualdade social.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), -vale apontar que exatamente as famílias mais pobres, que gastam com medicamentos muito menos que as famílias mais abastadas, em termos absolutos, são aquelas que proporcionalmente comprometem muito mais renda familiar na aquisição destes bens essenciais. A assistência farmacêutica pública é a única forma de acesso a medicamentos para grande parte da população brasileira, particularmente aquela de menor renda-.
O Brasil precisa avançar e não pode retroceder. Em 2011, o governo federal de janeiro a junho, segundo seus próprios dados, já gastou em juros nominais R$ 100 bilhões ou 5,1% do PIB. Podemos ver o salto se compararmos com os valores pagos nos mesmos períodos em 2010, R$ 68,5 bilhões (3,9% do PIB) e 2009, R$ 72,7 bilhões (4,8% do PIB). O cumprimento das metas de superávit primário chega ao nível do incompreensível. No primeiro semestre de 2011 o governo federal gastou R$ 75 bilhões ou 3,8% do PIB - ou seja, o que seria o gasto anual com a saúde. Mesmo descontando o que nesta conta corresponde ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), ainda assim teria gasto mais do que o dobro do que gastou em 2009 e 2010. Para isto, fez importantes cortes de custeio e investimento.
Continuamos com estatísticas elevadas das denominadas doenças da pobreza, como malária, tuberculose, leishmaniose, hanseníase, e temos de responder ao desafio dos problemas de saúde associados a um padrão de desenvolvimento inapto para compatibilizar os ritmos da produção econômica com os da natureza. Obesidade, hipertensão, diabetes, neoplasias e violências se somam aos agravos típicos do subdesenvolvimento.
Para responder à complexidade do perfil de morbi-mortalidade da população brasileira, diversas entidades da área da saúde propõem a adoção de limites e redução dos subsídios públicos para o financiamento do subsistema privado para assegurar suficiência e estabilidade de recursos para o SUS. Tais medidas são essenciais para assegurar que novas fontes de financiamento - como a de incluir a saúde como área contemplada no fundo social do pré-sal - sejam destinadas de fato à universalização do direito à saúde.
Outros debates avançam no interior dos partidos, do parlamento e dos movimentos sociais, para sustentar o incremento de gastos públicos com a saúde, como imposto sobre grandes fortunas, redução da Desvinculação de Recursos da União (DRU) sobre a seguridade e repassar para a base de cálculo da saúde, a recriação da contribuição social. Superar o padrão injusto de financiamento, portanto, constitui uma obrigação e um dever do Estado brasileiro para superar essa realidade ainda dolorosa e sofrida do povo brasileiro.
* Jandira Feghali é médica, deputada federal do PCdoB-RJ, membro da Comissão de seguridade social e família da Câmara dos Deputados e da Executiva da Frente Parlamentar de Saúde.
** Lígia Bahia é professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.