Teoria
Edição 106 > Lênin e o desenvolvimento do capitalismo na Rússia no final do século XIX
Lênin e o desenvolvimento do capitalismo na Rússia no final do século XIX
A análise da vida rural da Rússia, no final do século XIX, levou Lênin a observar que o campesinato constituía a base mais profunda e sólida do capitalismo naquele país. Com este dado formulou sua própria teoria sobre a transformação da economia mercantil russa numa economia capitalista avançada

A Rússia foi o último país europeu a abolir a servidão (1864). Essa transformação, em meio a medidas para reformar as relações de trabalho e de propriedade no campo, desencadeou um grande debate nos meios intelectuais e revolucionários a propósito dos rumos da economia. A formação do mercado interno, o papel do campesinato na expansão da economia agrária e a polêmica sobre o futuro da comuna rural (MIR) foram algumas das questões abordadas, ainda mais que a reforma de 1864 atribuiu certa importância ao MIR na condução das mudanças.
Entre os revolucionários russos havia grandes discordâncias quanto às respostas possíveis a esse conjunto de indagações. Um dos grupos mais ativos no debate eram os Narodniks (populistas).
Acreditavam os populistas, como todos os demais “eslavófilos”, na especificidade da comuna rural russa; defendiam a tese segundo a qual graças a seu “socialismo primitivo” ela poderia vir a constituir o embrião da sociedade futura que os revolucionários queriam implantar, sem que fosse preciso passar por uma transformação capitalista do campo.
O próprio Marx participou indiretamente do debate, através de escritos posteriores a O Capital. Quando Marx discutiu a acumulação primitiva no primeiro volume dessa obra baseou-se no caso inglês, que representava o capitalismo mais avançado do seu tempo. Ao fazê-lo apresentou a expropriação dos pequenos produtores, em geral, e do campesinato, em particular, através do cercamento dos campos, como sendo historicamente o principal mecanismo interno da acumulação primitiva que se combinava com a exploração externa das colônias, do tráfico de escravos etc. Deixa claro também em escritos posteriores que, embora num ritmo mais lento, o restante da Europa Ocidental já trilhava o mesmo percurso, isto é, promovia, em longo prazo, a destruição e a proletarização do campesinato. Mas abriu a possibilidade teórica de que na Rússia o caminho fosse outro: havia a possibilidade de a propriedade comunal da terra não precisar se tornar propriedade privada individual no sentido capitalista do termo e poder passar diretamente a uma forma de propriedade socialista (carta à revolucionária Vera Zassulitch de 8 de março de 1991, por exemplo).
Lênin intervém no debate sobre a questão agrária na Rússia com a publicação de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899) e o faz na contramão das teorias populistas, contradizendo sua principal tese.
A análise dos dados empíricos da realidade da Rússia, no final do século XIX, levou-o a propor a sua própria visão sobre o processo através do qual a economia mercantil se transformava numa economia capitalista avançada.
Comparando os dados estatísticos disponíveis convencera-se de que a agricultura mercantil (e capitalista) especializada existia no campo russo da mesma forma que nos países capitalistas da Europa Ocidental. Tirou-se a conclusão inevitável de que as relações econômicas existentes na comunidade rural russa não constituíam um sistema particular – “a produção popular” –, mas um regime pequeno burguês banal. O campesinato comunitário russo não era antagonista do capitalismo, mas, ao contrário, constituía sua base mais profunda e sólida. Base mais profunda porque justamente no interior da “comunidade” – longe de toda influência “artificial” e malgrado as instituições que entravavam o progresso do capitalismo – é que tinha lugar a formação constante de elementos capitalistas. Mais sólida porque sobre a agricultura, em geral, e sobre o campesinato, em particular, é que pesavam as tradições do regime patriarcal e, portanto, nele é que a ação transformadora do capitalismo (o desenvolvimento das forças produtivas, a mudança de todas as relações sociais etc.) se manifestava mais lentamente e de modo gradual.
Essa conclusão se apoiava principalmente em dois processos em curso no campo russo, longamente tratados no livro. Em primeiro lugar, conforme indicam os dados disponíveis (apesar das falhas nas estatísticas), um fenômeno profundo vinha ocorrendo: o antigo campesinato estava em vias de ser completamente destruído, dando lugar a outros tipos populacionais típicos da sociedade de mercado capitalista. Discordava, portanto, nitidamente dos populistas, para os quais o surgimento de algumas desigualdades de fortunas entre os camponeses constituía uma simples diferenciação que não alterava a estrutura específica do campesinato russo. Lênin via nesse processo a decomposição do campesinato.
Em segundo lugar, suas estatísticas permitiam constatar que, ao lado dos capitais tradicionalmente presentes no interior do agrário russo (usurário e comercial), estava presente o capital industrial, entendido como investimento produtivo, isto é, aplicado em meios de produção e trabalho assalariado.
Boa parte do livro se dedica a explicar e analisar os dois processos com o auxílio de dados empíricos.
Decomposição ao invés de diferenciação
Na nova estratificação social encontrava-se, de um lado, o burguês agrário ou camponês enriquecido, o kulak; cultivadores independentes praticando a agricultura mercantil sob todas as suas formas e proprietários de estabelecimentos industriais e comerciais que combinavam a agricultura com as “profissões auxiliares”. Essa burguesia gerava também a classe dos arrendatários. O arrendamento de terras para o trigo ocupava um lugar essencial em suas explorações, cujo tamanho ultrapassava as possibilidades da agricultura familiar. A condição indispensável para o surgimento dessa camada era a existência de diaristas para serem contratados. A burguesia agrária praticava empréstimos usurários e operações comerciais e/ou investia em suas explorações, ou em terras. Numericamente, segundo Lênin, esse grupo representava uma fraca minoria (1/5 dos estabelecimentos), proporção que variava no tempo. Sua predominância no conjunto da economia camponesa era atestada, entretanto, pela parte dos meios de produção que possuía e pelo valor da sua produção, vis-à-vis o conjunto da produção da economia camponesa.
De outro lado, os semterra e o campesinato pobre integravam o proletariado rural. Na Rússia o operário agrícola típico possuía um pequeno lote de terras e, às vezes, um cavalo. Esses minifúndios decadentes não produziam nem o suficiente para a sobrevivência do trabalhador que, portanto, precisava alugar sua força de trabalho para complementar a renda (inclusive nas “profissões auxiliares”). Nessas condições encontrava-se pelo menos metade dos estabelecimentos rurais. Conforme argumentava Lênin, se é fato que, de acordo com a teoria marxista, o capitalismo precisa de homens livres, separados dos meios de produção (expropriados) para assalariar, essa afirmação não devia ser entendida de modo mecanicista. A tese é válida porque define uma tendência fundamental do sistema capitalista. Mas como a transformação da sociedade se opera lentamente, sob formas variadas, em diferentes momentos pode ser do interesse dos proprietários de terras que os jornaleiros tenham um pedaço de terra na qual cultivem sua subsistência; por isso encontramos em diversos países e diferentes épocas históricas o operário agrícola dono de um pedaço pequeno de terra. O cottager inglês era diferente do camponês parcelário na França ou das províncias renanas e estes não eram iguais ao bobyl e ao knecht da Prússia. Em cada um deles permanecem traços de regimes agrários anteriores, mas do ponto de vista do funcionamento da economia eles podiam ser considerados operários agrícolas. Os fundamentos jurídicos que os tornavam proprietários são irrelevantes para essa classificação. Que a terra pertencesse a ele completamente (caso do camponês parcelário), que ele a recebesse para usufruto de um landlord (como o cottager) ou de um proprietário alemão, ou ainda que a obtivesse enquanto membro de uma comunidade rural grãrrussa, não mudava a essência da questão.
Havia também o camponês médio espremido entre a burguesia agrária e o proletariado rural – nesse estrato a economia mercantil penetrara de modo superficial. Sua situação era bastante instável e apenas nos anos de colheitas excepcionalmente boas seus membros conseguiam desenvolver uma agricultura independente. Na maior parte do tempo estavam endividados, forçados a se proletarizar ou então emigravam – os camponeses médios constituíam o principal grupo de emigração –, transportando consigo os germes da decomposição para as regiões de colonização nova, como a Sibéria, onde os recém-chegados trabalhavam como assalariados, pelo menos inicialmente.
Com a decomposição do campesinato crescia o mercado interno. Tanto no nível inferior, consumidores dos produtos de pior qualidade (batatas no lugar do pão, por exemplo), quanto no estrato superior – a burguesia agrária. Esta dinamizava o mercado de duas maneiras: primeiro, estimulando o mercado dos meios de produção (mercado do consumo produtivo), porque o campesinato rico se esforçava por converter em capital os meios de produção que “acumulava”; segundo, pelo fortalecimento do mercado de consumo pessoal.
A associação do capital comercial e usurário com o capital industrial
Historicamente o capital comercial e o capital usurário precederam a existência do capital industrial e foram condição obrigatória para o desenvolvimento deste. Entretanto, sem necessariamente revolucionar as relações de produção do sistema no qual operam, não são suficientes para fazer surgir o modo de produção capitalista. O capital mercantil e o usurário independem das relações de produção das sociedades exploradas por eles, e essa autonomia consiste na separação entre a produção e a circulação, característica que será superada pela consolidação do capital industrial.
Na Rússia, os camponeses ricos não exploravam apenas o comércio e a usura, mas também investiam nos melhoramentos agrícolas, na terra, no uso do trabalho assalariado etc. O capital era, portanto, empregado na produção. Se não fosse assim, e se o capital só criasse usura e servidão, os números da produção não fariam aparecer a decomposição do campesinato nem a formação de uma burguesia agrária. O campesinato seria uma massa uniforme esmagada pela miséria da qual apenas sobressairia o usurário e apenas por sua fortuna em dinheiro e não por seus empreendimentos. De fato acontecia que à medida que o comércio se desenvolvia aproximando as cidades e o campo, acabando com o sistema de barracões, e o crédito bancário substituía o agiota, os camponeses ricos investiam cada vez mais nas empresas agrícolas.
Essas características resumem os aspectos mais importantes do agrário russo que levaram Lênin a considerar que o capitalismo já avançara no processo de transformar as relações de produção. Outros aspectos corroboravam essa conclusão, mas é impossível mencionar aqui. A análise e as conclusões de Lênin deixam perceber que longe de repetir o que Marx escreveu n’O Capital, ele procurava dar conteúdo histórico às categorias que empregava, modificando às vezes a letra da obra de Marx, para preservar, segundo ele, o essencial da teoria marxista.
Após o surgimento do livro, suas ideias continuaram evoluindo e Lênin apresentou novas sínteses a propósito da formação do mercado interno e do papel do sistema agrário no desenvolvimento do capitalismo. No prefácio à 2ª edição (1907), deixa de lado a experiência inglesa de transformação capitalista do campo e sugere duas linhas de desenvolvimento objetivamente possíveis: “uma (era) a velha economia senhorial, atada por milhares de fios à servidão, ser mantida e se transformar lentamente numa economia Junker puramente capitalista. Nesse caso a base da transição final do trabalho servil ao capitalismo (era) a metamorfose interna da economia feudal senhorial. Todo o sistema agrário do Estado tornava-se capitalista e por muito tempo mantinha traços feudais. Outra possibilidade (era) a velha economia senhorial ser quebrada pela revolução, a qual destruiria todas as relíquias da servidão e em primeiro lugar a propriedade da terra em larga escala. A base da transição final do trabalho servil ao capitalismo seria então o livre desenvolvimento da pequena agricultura camponesa, que terá recebido um tremendo impulso como resultado da expropriação das propriedades dos grandes senhores no interesse do campesinato. Todo o sistema agrário tornar-se-ia capitalista, pois quanto mais completamente fossem destruídos os vestígios do feudalismo, o mais rapidamente se processaria a decomposição do campesinato” (Lênin, 1969:21).
Na Rússia, a burguesia liberal associada à antiga classe dominante ainda encastelada no Estado Imperial trabalhava com afinco pelo sucesso da primeira via. A possibilidade da segunda via (semelhante à colonização das terras do meio oeste americano) dependia de inúmeros fatores ainda não perfeitamente delineados. A existência de um “fundo de colonização” (terras desocupadas pertencentes ao Estado) na Sibéria certamente era uma condição importante, a imigração de camponeses médios e pobres também, mas a intervenção do Estado poderia intensificar ou deturpar a colonização interna. Ao mesmo tempo, a existência dessa fronteira aberta à colonização oferecia a possibilidade de o capitalismo se desenvolver em extensão ao invés de em profundidade (de certa forma, portanto, retardando-o). Essa distinção introduzida por Lênin está a merecer mais atenção dos estudiosos da fronteira.
O estudo do agrário russo e o comportamento político da burguesia liberal do seu tempo levaram Lênin no final do século XIX à conclusão de que o aliado do proletariado na revolução “democrático-burguesa” a ser realizada na Rússia era a grande maioria do campesinato que podia se comportar, ainda, como um todo e lutar para renovar o sistema de propriedade da terra.
Outros textos se seguiram a essa obra fundamental do marxismo russo e outros desenvolvimentos históricos e políticos mereceram reflexões que fizeram Lênin modificar algumas dessas conclusões, pelo menos para o caso da Rússia. Mas quando analisamos a obra de Lênin hoje em dia, o que chama a atenção é o modo como trabalhou a teoria marxista do seu tempo. Considerado por alguns um marxista ortodoxo, acusado por outros de panfletário, Lênin, entretanto, examinou as novidades da história com enorme espírito crítico. No caso do livro sobre o qual baseamos esta pequena exposição, Lênin fez acréscimos consideráveis à obra de Marx. Sugeriu novos modelos de transformação capitalista do campo (a via prussiana e a via americana); e atribuiu ao campesinato um papel bastante distinto daquele que encontramos em Marx (por exemplo, no 18 Brumário de Luis Bonaparte), elegendo-o como o aliado principal do proletariado no lugar da burguesia industrial (como no modelo inglês de revolução burguesa). Qualquer estudioso das revoluções do século XX terá dificuldade em compreendê-las sem o auxílio dessas ideias.
Ligia Osorio Silva - Professora do Instituto de Economia/Unicamp.