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Internacional

Edição 106 > Entrevista com David Harvey - “É preciso jogar luz sobre os problemas que estão na profundidade da crise”

Entrevista com David Harvey - “É preciso jogar luz sobre os problemas que estão na profundidade da crise”

Ana Maria Prestes e Fábio Palácio
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Entrevista com David Harvey

Geógrafo britânico de orientação marxista, David Harvey é um dos mais renomados intelectuais da contemporaneidade. Oriundo da Universidade de Cambridge, Harvey, atualmente professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da City University of New York (EUA), possui inúmeros trabalhos publicados em áreas como epistemologia da geografia e geografia urbana. Entre seus livros figura o já clássico Condição pós-moderna, trabalho em que analisa as transformações do capitalismo e seus reflexos na sociedade contemporânea

No último dia 27 de janeiro, o professor Harvey recebeu uma equipe de Princípios na cidade de Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial. Entre uma e outra de suas palestras no evento, ele falou sobre a crise econômica, as tarefas da esquerda na atualidade, a relação entre marxismo e pós-modernismo e o papel jogado pelo Fórum nos últimos 10 anos. Princípios publica a seguir a íntegra da entrevista.

Princípios – O tema da crise econômica tem sido muito abordado nos debates deste Fórum Social Mundial. Para muitos a crise em curso não seria apenas financeira, mas uma crise mais geral, de caráter até mesmo civilizatório. Qual sua visão sobre o tema?

DH – Penso tratar-se de uma crise mais geral, mas para mim o elemento mais destacado desta crise relaciona-se ao fato de que, antes, independentemente de onde surgisse a síndrome do capitalismo, havia aumento da taxa de crescimento composto. Ela começou a decrescer quando estávamos próximos de 2,25%, enquanto a taxa mínima deveria ser de 3% de crescimento para uma economia capitalista saudável. Se analisarmos esse número, perceberemos que outros 200 anos de crescimento composto de 3% não serão possíveis. Essa taxa significava praticamente nada em 1900, e passou a significar alguma coisa razoável apenas quando chegamos perto da década de 1970. Desde então observamos mais e mais crises se formando: a crise da dívida mexicana e do mundo desenvolvido de 1982, por exemplo, além de tantas outras que apareceram e que têm sido cada vez mais amplas e profundas. Mesmo dentro dos Estados Unidos, quando das três maiores crises, nas décadas de 1970 e 1980, ou quando houve a crise no Sudeste Asiático em 1997-98, todos diziam: “isto não tem nada a ver conosco”. Uma das coisas que aconteceu ao longo desse tempo é que as crises já não estão mais em outros lugares. Quando houve grandes crises no sul e sudeste asiático em 1997-1998, todos nos EUA podiam dizer: “isto não nos atinge em nada”. É um pouco o sentimento que havia, por exemplo, aqui no Brasil, recentemente, quando o país saiu da crise — ou pareceu sair. A tendência é dizer que esse é um problema do capitalismo anglo-americano, não um problema global. Mas desta vez creio que devemos reconhecer que é um problema global. E ver que o quadro que estamos observando parece ter raízes profundas. Penso que estamos nos deparando com a impossibilidade de manter as taxas de crescimento composto do capitalismo. É claro, para além do aspecto econômico, temos outros, como o aumento das desigualdades e da pobreza, o que, logicamente, torna o ambiente mais tenso. Então há pontos de tensão específicos, que ficam mais claros com o agravamento da crise. Temos de jogar luz sobre os problemas que estão na profundidade da crise. 

Princípios – Em conferência ministrada ainda ontem, o senhor mencionou sete aspectos que não podem ser desconsiderados se quisermos realmente superar o sistema capitalista. 

DH – De fato. Esses sete elementos são as formas tecnológicas e organizacionais de produção, troca e consumo; as relações com a natureza; as relações sociais entre as pessoas; as concepções mentais de mundo, abrangendo conhecimentos, entendimentos culturais e crenças; os processos de trabalho e produção de bens específicos; os arranjos institucionais, legais e governamentais; a condução da vida diária subjacente à reprodução social. Cada um desses momentos é internamente dinâmico e internamente marcado por tensões e contradições, mas todos eles são codependentes e todos eles coevoluem em relação com os outros.

Princípios – Como o senhor tem dito, a esquerda, os partidos e os diferentes movimentos muitas vezes encaram a crise focando apenas um (ou alguns) desses sete elementos. Considerá-los de outro modo, como parte de um todo sistêmico e articulado, certamente contribui para uma compreensão mais totalizante da crise. Não era esse o modo de ver dos clássicos do marxismo?

DH – Como falei ontem a respeito dos sete momentos, antes não os via articulados na teoria marxista como vejo agora. Mas está claramente exposto lá em O Capital, de Marx.

Sempre me questionei acerca do porquê de estarmos usando esse caminho (segmentado) para interpretar a dinâmica das mudanças sociais. Se olharmos como o capitalismo sobrevive, veremos que ele o faz em grande medida movendo-se por diferentes momentos. Os movimentos de agora são muito diferentes daqueles dos anos 1970. Nossas tecnologias são muito diferentes das dessa época. As relações com a natureza são muito diferentes. Todo o padrão de relações sociais é diferente. Mesmo naquilo que tange ideias sobre sexualidade, multiculturalismo, antirracismo, gênero... Todas essas noções também mudaram, assim como o sistema de produção. 

Portanto, se o capitalismo sobrevive movendo-se sobre esses sete aspectos que mencionei – incluindo, é claro, as transformações das instituições, realizadas pelo liberalismo com a finalidade de impor os novos arranjos de seu interesse, para permitir que novas relações de exploração de classe sejam construídas –, então a mudança dialética histórica é fundamental para o que estamos perseguindo. O movimento revolucionário tem todas essas coisas para pensar. Ele deve refletir sobre como se movimentar, de modo bastante dinâmico, em torno dessas sete esferas de atividades, esses sete aspectos ou elementos da vida social – seja qual for o nome que quisermos dar a eles. Aqueles que, como eu, trabalham com concepções teóricas somos apenas uma pequena parte de um conjunto muito maior. Devemos imaginar como mudar o mundo sem perder de vista que o mundo não mudará se também não mudarmos nossas próprias concepções. 

Princípios – O senhor aponta o comunismo como a única alternativa ao atual estado de coisas, mas critica o fato de ele não ter conseguido manter a tensão dialética entre esses sete elementos. Um novo comunismo deveria ser inventado? Como os movimentos e pensadores de esquerda, incluindo o senhor, deveriam encarar essa situação?

DH – Penso ser quase certo que não estamos explorando alternativas. Para mim, uma das coisas que acho interessantes sobre o período contemporâneo é a existência de uma gama enorme de experimentações, de alternativas sociais, de alternativas de como encarar a vida diária. Ontem estava conferindo uma exposição sobre economia solidária. Não creio que ela seja a resposta, mas, por outro lado, pode ser parte da solução.

Muitos movimentos – como os zapatistas no México e outros, na Bolívia e em outros lugares, assim como os movimentos ambientalistas – propõem novas matrizes energéticas, novos sistemas de abastecimento, de segurança alimentar... Então há inúmeras experimentações acontecendo por aí. Uma das coisas que eu espero, vendo do modo como vejo as coisas, é que as pessoas não desperdicem essas experimentações como os marxistas talvez tenham feito no passado, ao pensar coisas como “para fazer a revolução, as forças produtivas são o que importa, todo é resto é irrelevante”. Tudo o que nós temos de fazer é entender que esses movimentos estão tentando atravessar os sete momentos, até que consigamos implementar uma economia solidária e torná-la universal, e implementar um rearranjo das instituições capaz de permitir que 6.8 bilhões de pessoas na Terra deixem de viver no patamar em que estão vivendo. Até que possamos fazer isso, não poderemos responder à questão sobre como de fato o mundo anticapitalista se parece. 

A meu ver, muitas dessas experimentações têm sido importantes, mas as pessoas que se engajaram nessas experimentações também devem vê-las, a elas mesmas, como parte de um projeto de mudança social. E uma coisa que nós, acadêmicos e intelectuais, às vezes fazemos com nossas posições é ajudar. Ajudar as pessoas a ver como elas podem contribuir em relação à política. Eu não sou um organizador político, não sei como organizar politicamente. Mas eu trabalhei com organizadores políticos na cidade de Nova Iorque. Trabalhei, para citar um exemplo, com a organização dos sem teto de lá — um grupo fantástico —, e nós conversávamos sobre isso. Eles achavam que deveríamos ir além, e começaram a dizer: “bem, nós talvez devamos pensar o que estamos fazendo de maneira mais ampla, e nos inspirar no que outras pessoas estão fazendo em outros lugares”. Então começaram a procurar por aquilo que outros movimentos estariam fazendo, por aquilo que o MST estaria fazendo aqui no Brasil, por aquilo que outros movimentos sociais brasileiros estariam fazendo. E buscavam ver isso de forma conectada com o que algumas pessoas estariam fazendo no Leste europeu. Eles começaram então a pensar diferente acerca do que estavam fazendo, e já não se preocupavam apenas com os sem teto de Nova Iorque. E então diziam: “estamos preocupados com eles, mas também estamos tentando nos preocupar com o projeto político mais geral, somos sabedores disso”. Nós da esquerda temos de nos convencer de que não existe resposta mágica. Mas devemos congregar todas essas formas de experimentação e, então, ver como elas podem ser mais bem integradas, mais bem orquestradas. Quando menciono aqueles sete elementos, há o elemento das novas tecnologias aplicadas em sistemas de moradia, organização urbana, reciclagem de lixo, coisas desse tipo que podem ajudar a resolver parte dos problemas. Precisamos, portanto, de uma aliança mais ampla, de pessoas trabalhando em todos os aspectos, mas com todos tendo em mente que o objetivo é criar um sistema não capitalista.

Princípios – É possível dizer que o advento de análises mais globais da crise seria um sinal de que estamos nos reaproximando da análise metodológica marxista, de caráter mais sistêmico, em contraposição à visão pós-moderna prevalecente nas últimas décadas?

DH – Eu nunca concordei com a visão pós-moderna. Sempre busquei me fundamentar no pensamento marxista. Mas algumas vezes as interpretações de Marx, comuns na contemporaneidade – e em especial algumas interpretações do pensamento marxista existentes nos anos 1960 e 1970 –, não problematizavam as questões ambientais, por exemplo. Além disso, havia uma visão muito mecanicista das mudanças sociais. 

Motivado por essa situação, uma das coisas que venho tentando fazer nos últimos 30 anos é encontrar uma forma de ler Marx apropriada ao nosso tempo. Particularmente, tento compreender certos processos que me parecem fundamentais, como as mudanças ambientais e o desenvolvimento geográfico desigual, e como esses tópicos se articulam na teoria marxista. Para mim, este é um momento no qual, na verdade, podemos reler Marx e pensá-lo como um autor extremamente apropriado para o nosso tempo. Mas isso não será possível se mantivermos a mesma compreensão de Marx que se costumava ter nas décadas de 1960 e 1970. Temos de estar abertos a uma nova compreensão de Marx.

Princípios – O senhor tem afirmado que o neoliberalismo, de forma perspicaz, busca incorporar a seus projetos alguns elementos do pensamento de esquerda, como o multiculturalismo, o antirracismo e o feminismo. De que forma o pensamento pós-moderno influenciou esse processo?

DH – Bem, o pós-modernismo é um movimento com muitas faces e diversos elementos. Penso serem muito positivos alguns desses elementos. Acho, por exemplo, que a questão do relacionamento entre pós-modernismo e feminismo é complicada. Algumas feministas dirão que não são pós-modernas de maneira nenhuma. E algumas dirão que usam o modo pós-moderno de pensar para desenvolver seus argumentos. O mesmo ocorre com as questões de raça, sexualidade e outras desse tipo. O marxismo historicamente não tratou dessas questões a contento, excetuada talvez a questão racial. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia o Partido Comunista como a formação política mais avançada enfrentando a questão racial nos anos 1920. Houve pessoas no Partido Comunista, como Paul Robson e Angela Davis, que militaram em torno dessa questão. Não quero dizer que os comunistas são ruins e fogem dos debates, eles são bons em algumas dessas questões. Na África do Sul, por exemplo, eles lideraram a luta contra o apartheid. Sempre lembro que Mandela, quando saiu da prisão, agradeceu muito ao Partido Comunista. Então o que o pós-modernismo fez foi nos abrir para questões que nós, comunistas, por muito tempo nos recusamos a tratar. Ao assim proceder, o movimento pós-moderno nos ajudou politicamente a rever o modo como estávamos interpretando o mundo.

Hoje, o movimento pós-moderno está politicamente perdido. Mais e mais marxistas têm uma compreensão ecológica. Quando voltamos para Marx, notamos uma forte base ecológica em seus trabalhos teóricos. Ele falava de uma relação metabólica com a natureza. Voltamos então à teoria marxiana. Os desenvolvimentos pós-modernos engendraram algumas possibilidades que, acredito, nós da esquerda em geral adotamos. O problema, entretanto, é o pensamento pós-moderno afirmar que “não existe macroteoria, não existe macro-história, devemos abandonar a economia política”. Então um monte de teorias pós-modernas diz que macroeconomia não importa. E é muito difícil agora, frente a esta situação, dizer que macroeconomia não importa, que o que importa é cultura. Não se pode dizer isso agora. E você não poderia dizer isso na Argentina em pleno crash de 2001. Acho, portanto, que a tendência pós-moderna de deixar a política econômica para trás e insistir na retórica antitotalizante é um erro profundo. Essa noção da totalidade das transformações sociais que caracterizam diferentes momentos não é determinista.

Há, contudo, muitas oportunidades e aberturas para ir para este ou para aquele lado. Há vários caminhos abertos pelos pós-modernos que podem ser incorporados dentro da leitura marxista. E é isso que nós da esquerda podemos construir agora.

Princípios – Que balanço o senhor faz destes 10 anos do Fórum Social Mundial?

DH – Não estive envolvido com o Fórum desde o princípio. Estive nele pela primeira vez na edição de Belém. Minha impressão é de que no começo ele era muito excitante e um movimento bastante progressista. A meu ver, algumas decisões tomadas naquele tempo – como, por exemplo, a de excluir partidos políticos e outras formas de organização – podem até ter sido positivas para aquele momento, mas hoje são negativas. De algum modo as ONGs têm muito poder político dentro do FSM e tenho muita dificuldade em considerar que essas organizações da sociedade civil serão a base de um processo revolucionário de transformação. As ONGs podem abrir espaços para que as coisas aconteçam, mas elas não são os agentes das grandes mudanças políticas. Hoje elas são os grandes agentes da privatização do bem-estar social. Os Estados subcontratam algumas ONGs para tomar conta da pobreza, da água... Sou muito cético sobre o papel das ONGs dentro do processo FSM. Penso que isso ocorre porque este grupo esteve presente desde o princípio da organização do Fórum e suas redes cresceram e se consolidaram. Eles têm nos fóruns simplesmente uma oportunidade de se encontrar e prescindem de uma visão mais geral do processo. Este é o momento – especialmente por causa da crise, e porque o FSM não tem uma resposta consolidada a esta conjuntura de crise – de organizar um movimento anticapitalista. Porque neste momento, em Davos, estão discutindo como reconstruir o mundo pós-crise e certamente o farão. Eu vejo o movimento muito fragmentado, o que é um problema. Mas o lado positivo do FSM é o envolvimento de jovens e estudantes. Isso é incrivelmente importante.

Ana Maria Prestes é cientista política e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.

Fábio Palácio é jornalista.

Tradução de Mariana Venturini. Revisão técnica de Ana Maria Prestes.
 

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