Fórum Social Mundial
Edição 106 > Fórum Social Mundial completa uma década de existência
Fórum Social Mundial completa uma década de existência
No ano em que o Fórum Social Mundial completa 10 anos de existência, a região metropolitana de Porto Alegre – sua primeira sede em janeiro de 2001 – e a cidade de Salvador receberam ativistas de movimentos sociais e intelectuais para fazer o balanço de uma década de protesto social e elaboração de alternativas à globalização hegemônica. Dos mais críticos aos mais entusiastas todos convergem na opinião de que o FSM, ao longo destes últimos 10 anos, se consolidou como um importante espaço político de articulação de movimentos, lutas e campanhas, de intercâmbio de opiniões e de formulação de propostas de ação no rumo de um “outro mundo possível”

O Fórum da Grande Porto Alegre 2010 e o Fórum Social Temático da Bahia, realizado em Salvador, foram os dois primeiros de cerca de 30 que ainda acontecerão no decorrer do ano, uma vez que os encontros mundiais, desde 2005, ocorrem de dois em dois anos e o próximo será em janeiro de 2011 em Dakar, no Senegal. Com a realização de atividades em nove cidades da região metropolitana, o Fórum de Porto Alegre reuniu mais de 30 mil pessoas e comemorou e refletiu sobre os 10 anos do processo FSM. O destaque, no entanto, coube a quatro atividades em especial: a tradicional marcha de abertura, o diálogo com o presidente Lula no ginásio Gigantinho, o Seminário Internacional 10 anos depois: Desafios e propostas para um outro mundo possível e a Assembleia de Movimentos Sociais.
O presidente Lula, falando para milhares de participantes do FSM em Porto Alegre, enfatizou a importância das eleições brasileiras de 2010, nas quais é preciso assegurar a continuidade do processo mudancista iniciado em 2003, e fazê-lo avançar. Em Salvador participaram mais de 10 mil pessoas, e as atividades de destaque foram as Mesas de debates promovidas pelos organizadores, inclusive as do Seminário Crise e oportunidades, a Assembleia de Movimentos Sociais e a marcha de encerramento.
Seminário debate 10 anos do FSM
Na abertura do Seminário de Porto Alegre sobre os 10 anos do processo FSM pôde-se ter uma ideia do amplo espectro de ideias que alimentaram os sucessivos encontros e mantiveram vivo o processo FSM. Para Chico Whitaker (1), um dos idealizadores do encontro, através de uma inovação metodológica o FSM se distinguiu de todos os demais fóruns e encontros já realizados no mundo. Whitaker se refere à concepção do Fórum como uma praça pública onde os movimentos e ONGs se encontram e compartilham suas análises, experiências e proposições, sem que isto implique a adoção de declarações ou posições de todos os participantes. Para ele, essas “praças” deveriam ser promovidas a bem comum da humanidade.
Já para João Pedro Stédile, dirigente do MST e também presente desde a gênese do FSM, o encontro nasceu de forma coletiva, fruto de um processo que estava em curso, em que as lutas dos povos contra o neoliberalismo passavam a se articular em encontros internacionais. O FSM veio, portanto, de forma dialética combinar essas necessidades, um encontro massivo entre todos os que lutam por uma alternativa ao neoliberalismo e ao capitalismo imperialista. No entanto, segundo Stédile, em alguns momentos o Fórum deixou escapar algumas oportunidades, pois mesmo contribuindo para derrotar o neoliberalismo como ideologia, ele falhou ao não conseguir acumular um programa mais propositivo, ter ideias mais unitárias, construir espaços que promovessem mais ações de massa em nível internacional (2) e, principalmente, por nem sempre conseguir dar um conteúdo anti-imperialista às lutas antineoliberais.
Daqueles que defendem o fórum como um “espaço” aos que defendem o fórum como um “movimento” todos se perguntam por quanto tempo o FSM ainda será capaz de continuar inspirando os lutadores por um outro mundo. Em um momento em que a crise sistêmica do capitalismo ganha feições de crise civilizatória da humanidade cresce o estímulo às convergências e, sobretudo, às leituras mais globais da realidade mundial. Da fragmentação e atomização de temas e lutas dos primeiros anos de FSM passa-se a uma etapa de sistematização e constituição de consensos mínimos.
Os movimentos sociais devem ser os protagonistas
A questão é que na elaboração desta sistematização e na tentativa de constituição de consensos manifestam-se as diferenças fundamentais entre aqueles que conduzem a evolução do FSM há alguns anos. A disputa por protagonismo entre algumas ONGs e os movimentos sociais continua intensa no interior do processo. Para Emir Sader, é necessário passar do diagnóstico às alternativas e isto só será possível se essas ONGs saírem do primeiro plano na organização dos fóruns e ajudarem os movimentos a protagonizarem. De outro modo a oportunidade criada pela crise do neoliberalismo poderá ser desperdiçada e seus promotores terão tempo e espaço suficiente para se recompor enquanto não se apontam alternativas concretas ao sistema.
O que se viu, no entanto, na condução do evento em Porto Alegre, por um lado, foi um fortalecimento das ONGs que durante anos constituíram o secretariado internacional do FSM a partir do Brasil (3), agora organizadas no Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo do FSM, ou simplesmente GRAP. Desde 2007, com a criação de um Grupo de Enlace no Conselho Internacional do FSM, seu papel havia perdido consideravelmente o propósito. Seu protagonismo volta à tona com a realização do FSM 2009 em Belém e com o Seminário Internacional 10 anos do FSM em Porto Alegre. Segundo um de seus expoentes, Oded Grajew, o objetivo que guia o grupo é oferecer uma oportunidade de fortalecimento da sociedade civil, juntar os que estavam separados, sem imposições e com especial valorização do caminho, do processo. Por outro, e o que é mais importante, os movimentos também se fortaleceram em Porto Alegre ao realizarem uma expressiva Assembleia dos Movimentos Sociais que apontou para lutas concretas e lançou campanhas importantes como a que denuncia o processo de militarização da América Latina.
Este é um debate longe de chegar a um fim. Até porque restam mais dúvidas do que certezas sobre os benefícios de uma eventual resolução dessa contradição. O que sabemos é que o FSM é um espaço de debate de ideias, e a Assembleia de Movimentos Sociais um meio de unificação das bandeiras e agendas dos movimentos sociais. O inovador do processo FSM está justamente no fato de conseguir dar algum conteúdo de unidade à relação entre movimentos sociais, ONGs e governos progressistas. Como se observou nos Fóruns de Porto Alegre e Salvador, ambos ocorridos no mês de janeiro de 2010. O maior exemplo dessa conjunção, este ano, foi a participação do presidente Lula no encontro de Porto Alegre. Se nos primeiros fóruns a presença de chefes de Estado era questionada, e às vezes vetada pela maior parte do atual GRAP e das ONGs internacionais, hoje sua participação é promovida por ONGs como o IBASE, uma das organizações de destaque no processo FSM.
O FSM evolui na relação com partidos e governos
Essa mudança de postura frente a governos se deve, especialmente, às transformações ocorridas na América Latina no último período. Na última década e meia, como produto das lutas sociais contra o neoliberalismo, foram eleitos em vários países latino-americanos líderes que, com diferentes formas e profundidade, assumiram posturas críticas ao modelo neoliberal, apresentaram a seus povos propostas nacionais alternativas e inovaram na busca de mecanismos de integração na região. A mudança na relação entre governantes e seus projetos com os movimentos populares refletiu em significativas mudanças internas no processo FSM. Ao mesmo tempo em que o Fórum abrigou o debate e a elaboração de propostas que incidiram nesse planos de governo, também o Fórum se beneficiou do resultado da transformação dessas reflexões em políticas públicas e em uma significativa mudança na relação entre governos, partidos e movimentos.
Se antes o FSM era visto como um encontro eminentemente “antiEstado”, hoje há nítidos sinais de que a luta por um outro mundo possível passa necessariamente pela luta pelo poder político de Estado e, para isso, é imprescindível a interação, respeitada a autonomia recíproca, entre partidos, movimentos sociais e governos/Estados. Esta postura se manifesta desde a organização dos eventos em si, em que a ajuda de governos progressistas tem sido fundamental para garantir a materialidade dos encontros, nas agendas com lideranças e membros desses governos e nas pautas de discussão de oficinas, seminários e assembleias de movimentos que dialogam com os promotores das políticas públicas em seus países.
Esta foi uma das mudanças significativas ocorridas no FSM da sua origem até aqui e serviu para desmistificar os preconceitos e vetos quanto à participação de partidos e governos em seu interior, uma das marcas dos encontros iniciais. Serviu também para politizar os encontros e dar conteúdos mais concretos a seus debates e reflexões. Serviu para animar a militância e dar esperança de que afinal a fatalidade do neoliberalismo como modelo único era mesmo despropositada.
Resistências e revoluções nacionais e de trabalhadores
No início do processo FSM, estavam em voga ideias que preconizavam o fim do imperialismo como os marxistas o conceituam, a emergência de um “império” mundial do capital que implicaria o fim do Estado-Nação, e de novos sujeitos político-sociais que supostamente substituiriam a centralidade da luta dos trabalhadores. Uma das consequências dessas ideias era a impossibilidade das resistências e das revoluções nacionais lideradas por trabalhadores e seus partidos.
O que se viu, nesse início de século XXI, foi a derrocada dessa tese e, de fato, uma agressividade maior do imperialismo, o desenvolvimento das lutas anti-imperialistas contra a guerra, da solidariedade internacional e de novos processos revolucionários nacionais na América Latina e mesmo na Ásia, como é o caso do Nepal. O que se viu nessa década foi o protagonismo dos trabalhadores, da cidade e do campo, liderando esses processos revolucionários e de resistência, ao lado de múltiplos novos e renovados movimentos sociais. Hoje o processo FSM já reflete essa maior relevância para os temas do trabalho e da luta dos trabalhadores. Os Fóruns recentes de Porto Alegre e Salvador evidenciaram o protagonismo das centrais sindicais brasileiras nos debates e nas mobilizações.
América Latina e a luta anti-imperialista
É essencial para os movimentos que não haja recuo neste avanço das forças progressistas na América Latina e nos importantes reflexos desse processo na organização da luta em outras partes do mundo. O continente fervilha justamente porque na contramão dos avanços está uma contraofensiva da direita de grandes proporções.
O imperialismo estadunidense se movimenta para impulsionar Tratados de Livre Comércio com países da região, como Colômbia e Peru, e aprofundar as políticas neoliberais nestes países, como as privatizações, e especialmente, neste momento, tem reativado iniciativas militares, como a 4ª Frota e as novas bases militares no continente. Tudo isso ocorre ao lado da crescente criminalização dos movimentos sociais. O recente golpe de Estado em Honduras e a militarização, por parte dos EUA, do Haiti pós-terremoto (4), são sinais bastante claros da reação ao processo de mudança na região.
O FSM supera o Fórum de Davos
Pode-se apreender desta discussão que de forma flagrante o FSM está hoje muito mais conectado à realidade mundial do que seu antípoda, o Fórum Econômico Mundial (FEM). Observar esta relação, 10 anos depois, também é um exercício interessante. A começar pelo fato de na última década as análises e previsões feitas no FSM terem se revelado muito mais acertadas do que as feitas no FEM. Se no princípio do milênio o neoliberalismo – através de privatizações, “livre comércio” e desregulamentação econômica – era debatido no FEM como a solução das crises do capitalismo, no FSM era visto como a mais injusta das fases do capitalismo e que redundaria em aprofundamento da crise, como comprovado em 2008.
Enquanto o FEM se esvaziou de ideias, o FSM se agigantou em temas e atores sociais e políticos. Os empresários e governantes reunidos em Davos estão fadados a debates frios e calculistas para recompor a bolha econômica dentro da qual se escondem do resto da humanidade. Enquanto isso, do lado de fora da bolha se multiplicam as experiências sociais que combinam a luta dos trabalhadores e dos movimentos sociais urbanos com as experiências e os saberes ancestrais dos indígenas e camponeses, com os movimentos pela independência nacional, pela paz e contra a guerra imperialista, com a histórica luta pelo socialismo e por um sistema plenamente pós-capitalista, de “bem viver”, como dizem os movimentos indígenas, ao qual conquistaremos com a sociedade comunista.
Enquanto a dinâmica do FEM esfria e endurece no seio das montanhas geladas de Davos, o FSM se multiplica e se mundializa, tendo agendado para este ano de 2010 mais de 30 encontros em locais distintos: 2º Fórum Social dos EUA em Detroit; 1º Fórum Social do Iraque; 6º Fórum Social Europeu (Turquia); Fórum Social de Osaka no Japão; Fórum Temático sobre Alternativas à Crise Financeira na cidade do México; Fórum Mundial de Educação na Palestina; Fórum Temático de Questões Trabalhistas na Argélia; e tantos outros. Merece um destaque especial o Fórum Social Américas, em agosto, no Paraguai.
Alternativa histórica é transição para sociedade pós-capitalista
Para constituir uma transição para este sistema pós-capitalista será preciso conquistar o poder político. Esta é a nova tônica do FSM. Ao contrário da influência de teóricos como John Holloway, do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, pensadores como Samir Amin e David Harvey têm cada vez mais influência nas elaborações em curso no seio do FSM. Assim como o processo de mudanças na América Latina fez o FSM mudar seu tratamento com partidos e governos, a crise financeira global fez com que houvesse no FSM uma inflexão no modo de tratar as transformações necessárias.
O FSM ajudou a iluminar as várias dimensões da crise do sistema, mas é preciso fazer uma opção teórica e metodológica, invariavelmente marxista, para fazer uma leitura mais acurada da crise de forma sistêmica. Antes mesmo do colapso financeiro, segundo Samir Amin (5), outras dimensões da crise foram reveladas para a conscientização pública, identificadas como crise energética, crise alimentar, crise ecológica, todas facetas do mesmo problema, “com base na perda de recursos para que o dividendo imperialista funcione, em escala global, a favor da plutocracia oligopolista do imperialismo”. A gestão desta globalização é realizada pelas oligarquias financeiras e garantida pela militarização do planeta.
A alternativa a essa crise civilizacional do capitalismo deve ser pós-capitalista e não pré-capitalista, como algumas ideias anticapitalistas que querem fazer a roda da História girar para trás. Para David Harvey (6), um dos palestrantes do Seminário Internacional 10 anos do FSM, é preciso recuperar os preceitos do comunismo e propor uma alteração absoluta da ordem estabelecida. Sendo o maior obstáculo o fato de que ainda “não há movimento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar adequadamente a reprodução da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial”. A questão central, segundo Harvey, é que apesar de haver uma possível ordem social alternativa, a oposição ao sistema, da qual o FSM é parte expressiva, precisa ser transformada em uma espiral virtuosa em que os movimentos políticos ocorridos em variadas partes do mundo estejam conectados de forma que um reforce o outro. Para Harvey, a absoluta necessidade de um movimento revolucionário e coerente de superação do capitalismo deve ser reconhecida e o FSM pode ser um espaço de formulação e articulação deste movimento.
Ana Maria Prestes Rabelo - Cientista Política, representante da OCLAE no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB.
Ricardo Alemão Abreu - Economista, diretor de Movimentos Sociais do Cebrapaz, e secretário de Relações Internacionais do PCdoB.