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Edição 102 > O Futuro da América Latina
O Futuro da América Latina
Emir Sader, ensaísta e cientista social, é um intelectual de tipo importante, mas infelizmente raro na atualidade. Seu labor teórico se realiza em “simbiose” com a prática política, com a ação transformadora. Militante marxista influente é, hoje, secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). Emir, gentilmente, autorizou Princípios a publicar um trecho do seu último livro, A Nova Toupeira, no qual analisa as singularidades da luta anticapitalista contemporânea, tendo como foco a luta de resistência e pela superação do neoliberalismo na América Latina. Na apresentação de sua obra ele traça uma rica análise sobre o itinerário do movimento revolucionário, nos últimos 50 anos. Segundo ele, “enquanto houver capitalismo, o socialismo permanecerá no horizonte histórico como alternativa, potencial ou real, porque é, em última instância, o anticapitalismo, sua negação e sua superação dialética”. O papel da teoria, para ele, é captar e interpretar o que há de novo e original na realidade “para sermos contemporâneos do nosso presente”. Ressalta, também, que “a revolução nunca se repete da mesma maneira e tem sempre a cara de herege”. Sobre o nosso continente, ele afirma: “a América Latina vive uma crise hegemônica de enormes dimensões, em que o velho tenta sobreviver, enquanto o novo encontra dificuldades para substituí-lo”.

Fases da luta antineoliberal
A luta contra o neoliberalismo já tem história, já passou por várias fases – da resistência ao início da construção de alternativas – e agora enfrenta um novo momento, o da contraofensiva da direita, com as respostas correspondentes da esquerda.
Em 1994, mesmo ano do lançamento do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta), os zapatistas conclamavam à resistência à nova onda hegemônica. Em 1997, Ignácio Ramonet chamava, em editorial de Le Monde Diplomatique, à luta contra o “pensamento único” e o consenso de Washington. O Fórum Social Mundial de 2001 convocava à construção de “um outro mundo possível”. As manifestações contra a OMC, iniciadas em Seattle, em 2001, revelavam a extensão do mal-estar diante do novo modelo hegemônico e o potencial popular da luta de resistência. Era uma fase de resistência, de defesa contra a virada regressiva de proporções históricas gigantescas, operada pela passagem de um mundo bipolar para o mundo unipolar, sob a hegemonia imperial norte-americana, e do modelo regulador para o modelo neoliberal.
No plano governamental, a consolidação da hegemonia neoliberal produziu-se pela passagem da geração direitista inicial (Pinochet, Reagan e Thatcher) para a segunda, que alguns de seus protagonistas reivindicaram como a “terceira via” (Clinton, Blair e FHC), ocupando assim quase todo o espectro político. Essa força compacta começou a ser contida com a eleição de Hugo Chávez à presidência da Venezuela, em 1998, concentrando-se a partir daí na América Latina. Com a derrota eleitoral dos principais promotores do novo modelo (FHC, Menem, Fujimori, Carlos Andrés Pérez e PRI), revelou seu fracasso.
No entanto, essa reação popular refletida nos triunfos eleitorais que sucederam ao de Chávez – Lula (2002), Kirchner (2003) e Tabaré Vázquez (2004), aos quais se pode acrescentar Daniel Ortega (2006) – ocorreu num cenário diferente do que se pensava. Ainda que vitoriosos contra governos ortodoxamente neoliberais, esses novos governantes não apontaram para a ruptura com o modelo neoliberal; ao contrário, mantiveram-no, com distintos graus de flexibilização, sobretudo em razão do peso que passaram a ter as políticas sociais.
Somados a partir da opção pelos processos de integração regional – em primeiro lugar pelo Mercosul – e da derrota da Alca – para a qual colaboraram ativamente –, esses novos governos revelaram diferenças significativas em relação aos anteriores, contribuindo para o surgimento de um cenário político inédito no continente pela existência simultânea de uma quantidade de variadas formas de governos que se opunham aos tratados e às políticas de livre-comércio pregadas pelos Estados Unidos, assim como à sua política de “guerra infinita” – que teve apenas na Colômbia uma adesão explícita na região.
As vitórias de Evo Morales (2005) e de Rafael Correa (2006), ao lado do lançamento da Alba, do Banco do Sul, do gasoduto continental e da adesão da Venezuela e da Bolívia ao Mercosul deram contornos mais amplos e fortaleceram um eixo de governos que, além do privilégio dos processos de integração regional, começavam a construir modelos de ruptura com o neoliberalismo (modelos pós-neoliberais). O triunfo eleitoral de Fernando Lugo (2008) alargou o campo dos governos progressistas no continente, ao qual se pode somar proximamente Mauricio Funes, em El Salvador.
No entanto, a partir de 2007, depois de pega relativamente de surpresa pela proliferação de governos progressistas na região, a direita retomou a capacidade de iniciativa. Esses governos haviam capitalizado no plano eleitoral o descontentamento social gerado pelas políticas neoliberais, avançando nesse plano – o elo mais frágil da cadeia neo-liberal.
Pode-se prever que os próximos grandes enfrentamentos na região se darão nos processos de eleição ou reeleição dos atuais governantes dos países participantes dos projetos de integração regional, objetivo para o qual apontam tanto as forças atualmente governantes quanto as ofensivas das direitas locais. Sucessões como as de Uruguai (2009), Bolívia (2009 conforme a nova Constituição), Brasil (2010), Argentina (2011) e Venezuela (2012) definirão se o espectro atual de governos progressistas terá continuidade – condição necessária, embora não suficiente, para que a fisionomia da região na primeira metade do século XXI seja definida a partir desse campo de enfrentamentos – ou se a direita voltará à cena.
Para uma América Latina Pós-Neoliberal?
Até que ponto esse novo impulso transformador na América Latina pode aprofundar seus modelos antineoliberais em um mundo que continua dominado pelas políticas de livre-comércio, pela OMC, pelo Banco Mundial, por potências predominantemente conservadoras – das quais a Europa é um exemplo e os EUA, mesmo com Barack Obama, são outro?
O socialismo soviético representou o primeiro grande impulso transformador no século passado, mas fracassou porque não conseguiu superar seu isolamento inicial e, quando o fez, não foi na direção da Europa desenvolvida, do centro do capitalismo, dos países de maior desenvolvimento dentro do próprio continente das forças produtivas, mas na direção oposta, da Ásia mais atrasada e da América Latina, e de um país de menor desenvolvimento dentro do próprio continente, Cuba. Que potencialidades tem o processo de luta antineoliberal na America Latina? Resumem-se a reações antineoliberais no marco dos regimes capitalistas ou têm um potencial transformador muito mais profundo? Os governos de países como Brasil, Argentina e Uruguai serão sucedidos por governos de direita, e terão representado apenas um momento de recomposição dos processos de acumulação e de reconquista de legitimidade dos estados, postos em crise pelas políticas neoliberais?
A luta antineoliberal, ainda que recente, já tem história, já percorreu várias fases. Começou com o “caracazo”, movimento popular de resistência ao pacote neoliberal do governo de Carlos Andrés Pérez na Venezuela, em 1989, continuou com a rebelião zapatista, em 1994, e prolongou-se com as mobilizações populares dos camponeses sem-terra no Brasil, com as lutas dos movimentos indígenas no Equador, na Bolívia e no Peru, com as lutas dos piqueteiros e pela recuperação das fábricas na Argentina. Em sua fase de luta defensiva, houve resistência ao neoliberalismo.
O triunfo eleitoral de Hugo Chávez, em 1998, combinado com as crises no Brasil (1999) e na Argentina (2001-2002) funcionou como um momento de transição para uma segunda fase, a da crise hegemônica e da disputa política pelo governo e pela colocação em prática de políticas alternativas. Se na primeira etapa os movimentos sociais tiveram um papel protagonista, a passagem para a segunda significou, para as forças antineoliberais, o desafio de reocupar o espaço político mediante formas tradicionais ou inovadoras de articulação entre a esfera social e a esfera política.
Veio em seguida a fase marcada pela impressionante série de vitórias eleitorais no bojo da rejeição ao neoliberalismo, de eleições e de reeleições de governos que, de uma forma ou de outra, foram constituindo o novo bloco de forças progressistas na América Latina e configurando um espaço alternativo aos governos que haviam ocupado praticamente todo o espectro político do continente da década anterior.
Essas forças avançaram nas linhas de menor resistência do neoliberalismo – em especial as políticas sociais, pelas devastações produzidas pelo neoliberalismo nesse plano – e nos projetos de integração regional – pelo fracasso das políticas e livre-comércio no continente –, assim como nos graus de recomposição da capacidade dos Estados – tornados mínimos pelo neoliberalismo – a fim de promover regulações e retomar sua função de garantir e estender os direitos sociais.
Foi o período histórico que mais alterou na direção progressista, de forma concentrada, o campo político e ideológico latino-americano – só comparável ao ciclo de guerras de independência, dois séculos antes. Estando o neoliberalismo despreparado para enfrentar reações no plano político, e os Estados Unidos envolvidos em sua política de “guerra infinita” em políticas para a região, em poucos anos – de 1998 a 2008 – assumiram governos dessa linha em oito países da região, com derrotas importantes em apenas quatro (México, Peru, Colômbia e Costa Rica).
Depois desse período de extensão dos novos tipos de governo, alguns sinais começaram a apontar para uma reação, para uma contraofensiva da direita. As duas fases se entrelaçam no tempo: enquanto Fernando Lugo triunfa, e põe fim a mais de seis décadas de regime colorado, e Mauricio Funes (FLMN) desponta como favorito nas eleições de abril de 2009 em El Salvador, as ofensivas direitistas, valendo-se das dificuldades e das contradições vividas por esses governos, continuam.
Essa reação teve início com a ofensiva da direita Venezuelana – e a tentativa de golpe em abril de 2002 –, logo seguida das denúncias de corrupção contra Lula (2005). Ambos os casos prenunciavam a nova configuração do bloco da direita – direção ideológica e política da grande mídia privada, do bloco da direita – tendo os partidos da direita como agentes.A direita boliviana valeu-se da Assembleia Constituinte para reagrupar-se, concentrando-se nas áreas economicamente dinâmicas da região oriental do país.
A direita retomou a iniciativa contra Lula com denúncias de corrupção – apoiado no férreo monopólio da mídia privada e no bloco de partidos de direita – que apontavam para o seu impeachment. O apoio obtido através das políticas sociais permitiu ao presidente superar a crise e consolidar-se por essa mesma via reelegendo-se e conseguindo o apoio de quase dois terços da população e um nível de rejeição de apenas 8%.
Hugo Chávez teve de enfrentar uma oposição direitista que alternou boicotes com participação eleitoral. Confiante na possibilidade da via institucional, a direita reunificou-se e fortaleceu-se, até derrotar o governo no referendo de novembro de 2007. Assim que assumiu o lugar do marido, Cristina Kirchner sofreu fortes ataques da oposição a partir de sua proposta de elevação de impostos sobre as exportações agrícolas. Depois de ter conseguido aprovar seu projeto de uma nova Constituição, Evo Morales sofreu os mais violentos ataques da oposição, que afetaram o apoio ao seu governo.
Até aqui, os blocos opositores tiveram um caráter claramente restaurador diante dos avanços conseguidos, em maior ou menor medida, pelos governos progressistas. Suas plataformas apontam para uma retomada dos Estados mínimos, com menos impostos, retomada dos processos de privatização, diminuição dos gastos estatais, mais abertura das economias e acentuação dos processos de precarização das relações do trabalho. Trata-se de um conjunto de medidas que não compõe um programa, serve apenas para aglutinar setores descontentes e deslocados do poder.
O que será da América Latina depois desses governos progressistas? Que grau de irreversibilidade têm as transformações? Que tipo de regressão pode sofrer o continente, caso não consiga consolidar os processos políticos atuais?
Uma primeira possibilidade seria o prolongamento dos governos atuais e, como consequência, a consolidação dos processos de integração, que se projetaria para moedas únicas regionais eventualmente Bancos Centrais coordenados, concretização do parlamento Latino-Americano, com avanços nos modelos econômicos de cada país e mais possibilidades de ruptura e de construção de modelos alternativos. No plano internacional, a América Latina daria uma forte contribuição à construção de um mundo multipolar, fortalecendo a integração regional.
É necessário recordar que as estratégias antineoliberais, as únicas possíveis no marco das correlações de força nacionais e internacionais, supõem uma disputa hegemônica prolongada, porém não significam nem a aliança subordinada a frações de burguesias dominantes – como na estratégia reformista tradicional – nem o aniquilamento do adversário – como na estratégia da luta armada.
Significam antes recolocar a disputa hegemônica como guerra de posições – no sentido gramsciano –, passando pela conquista de governos, de programas que revertam os processos mercantilizadores e retomem a capacidade reguladora e de implementação de medidas sociais por parte do Estado, que impulsionem a recomposição de sujeitos sociais antineoliberais e anticapitalistas e, numa etapa superior, a partir de um Estado refundado, cristalizem a nova relação de forças e de poder entre os grandes blocos sociais.
Alguns projetos de integração regional apresentam grandes dificuldades e podem ser desarticulados dependendo do grau do avanço alcançado pelos governos atuais; é o caso do gasoduto continental, do Banco do Sul, do Conselho de Segurança da América do Sul, entre outros. Há um apoio popular como nunca a esquerda havia tido no continente, sobretudo graças às políticas sociais desenvolvidas pelos governos progressistas, elemento diferenciado em relação aos governos neo-liberais.
Esse apoio se contrapõe ao poder econômico e midiático da direita, e faz com que as eleições na região se desenvolvam em cenários muito similares. Os candidatos podem ser mais radicais ou mais moderadores, o cenário se repete sempre: há, de um lado, um bloco neoliberal apoiado no poderoso monopólio privado da mídia e, de outro, as políticas sociais dos governos. Esse monopólio fabrica – no sentido de “fabricação do consenso”, termo empregado por Chomsky (1) – a opinião pública, define cotidianamente os temas que seriam os sinais mais importantes para o país, faz passar sua interpretação como se fosse de interesse geral, mas é derrotado quando intervêm os eleitores. A ponto de um jornalista brasileiro, derrotados ele e o jornal para o qual trabalhava nas eleições presidenciais de 2006, afirmar: “O povo derrotou a opinião pública”.
Por seu significado, o destino de processos como de Venezuela, Bolívia e Equador é essencial para o futuro político e ideológico da região, ainda que este dependa, pelo peso desses países, do que acontecerá com os governos atuais do Brasil e da Argentina e qual será o futuro do México. O certo é que a fisionomia da América Latina na primeira metade do século XXI depende do destino dos governos progressistas atualmente existentes no continente.
Mas que peso pode ter a América Latina na situação do neoliberalismo e do capitalismo no mundo? Em que medida a diminuição do peso econômico do continente, sob o impacto negativo das políticas neo-liberais, tira importância de tudo que a região vive hoje, e promete continuar vivendo no futuro próximo, no destino, geral do mundo nas próximas décadas?
Podemos dizer, de forma sintética, mas sem perder o essencial, que o mundo contemporâneo está dominado por três grandes eixos, por três monopólios de poder: o poder das armas, o poder do dinheiro e o poder da palavra. A América Latina pode contribuir, em alguns aspectos, para o avanço na superação dessas estruturas de poder, mesmo que, por si só, não tenha peso para alterá-las substancialmente. No entanto, mediante alianças com Índia, China, África do sul, Rússia e Irã, e com a intensificação dos intercâmbios Sul-Sul, o continente pode vir a pesar numa inserção distinta do cenário mundial e num mundo igualmente distinto. De certa forma, isso já é verdade, e comprova-se na capacidade relativa de resistência diante da crise econômica atual, que não deixa de afetar o continente, porém de forma muito mais amainada do que nas crises anteriores.
A luta contra o poder das armas significa romper o mundo sob a hegemonia imperial estadunidense. Para isso, a contribuição da América Latina tem sido recusar-se a apoiar as políticas de guerras infinitas de império, o que se deu de maneira muito clara quando os Estados Unidos não conseguiram nenhum voto no Conselho de Segurança da ONU para a invasão do Iraque, nem sequer de alguns de seus aliados mais próximos como o Chile e o México. A Colômbia, epicentro das guerras infinitas na região, encontra-se isolada, como se viu no episódio da agressão ao Equador, quando recebeu o apoio somente de Washington e a condenação dos outros países, assim como da OEA. A América Latina é a única região do mundo a realizar processos de integração relativamente autônomos em relação aos Estados Unidos, a ter alternativas aos tratados de livre-comércio propostos por Washington e pela OMC. Possui, além disso, alguns dos poucos governos do mundo que se opõem frontalmente e desafiam a hegemonia imperial norte-americana: Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador.
No entanto, isso não é suficiente para construir um contrapeso político e militar aos Estados Unidos; no máximo, resiste e constrói uma área de integração numa região com pouco peso na nova ordem econômica mundial. A fundação da Unasul, um projeto de integração de toda a América do Sul, e a proposta de um Conselho Sul-Americano de Defesa, ambos sem a participação dos Estados Unidos, assim como o início do funcionamento do Parlamento do Mercosul, apontam para um espaço mais amplo e com novos potenciais de Integração.
A importância do conjunto da região vem de seus recursos energéticos (em particular o petróleo, mas também o gás) e de seu agronegócio (com destaque para a exportação de soja, mas também para o mercado de consumo interno, em processo de constante ampliação), assim como seus processos de integração, que multiplicam a força política em negociações de seu interesse. Mas são os processos de ruptura com o modelo neoliberal e os espaços de comércio alternativo, como a Alba, que fazem do continente uma referência nos debates sobre alternativas ao neo-liberalismo, como ocorre de forma crescente no Fórum Social Mundial e nos fóruns regionais e temáticos. Lideranças em níveis e espaços distintos, como a de Hugo Chávez e a de Lula, tanto quanto a projeção de processos como o boliviano e equatoriano, dão a dimensão política da importância crescente da América Latina no mundo.
Contudo, há debilidade nos processos pós-neoliberais latino-americanos, e um dos elementos dessa debilidade é seu relativo isolamento mundial. Não encontrando aliados estratégicos, o continente é obrigado a aproximar-se de países com alguma forma de conflito com os Estados Unidos, como Rússia, Irã, China e Bielo-Rússia. Além disso, os países que deram passos concretos no sentido da ruptura com o modelo neoliberal não são os de maior desenvolvimento relativo na América Latina, embora possam contar com o peso do petróleo venezuelano como trunfo importante do ponto de vista econômico.
No plano ideológico, a América Latina pode lançar teses para o debate, como as do Estado plurinacional e pluriétnico, do socialismo do século XXI e da integração solidária, exemplificada pela Alba. No entanto, nem mesmo dentro de cada país há meios de difusão de novas ideias à altura dos processos políticos contemporâneos e de seus desafios e que se contraponham ao pensamento único e suas teses, reiteradamente reproduzidas pela mídia monopolista.
O pensamento crítico latino-americano, com uma larga tradição de grandes interpretações e propostas teóricas e políticas, encara novos desafios a partir de temas renovados, como o novo nacionalismo e os processos de integração regional, os povos originários e o novo modelo de acumulação, os processos de socialização e desmercantilização, as novas formas a ser assumidas pelo Estado, as funções e a natureza da esfera pública, o futuro político e histórico do continente.
Em alguns países, dos quais o mais significativo é a Bolívia, há um rico e renovado processo de reflexão e de elaboração teórica sobre os processos em curso. Em outros, e o caso mais radical é a Venezuela, vê-se uma enorme dissociação entre a intelectualidade acadêmica e o processo vivido pelo país. Em outros ainda, como Brasil, Argentina e México, apesar de seu forte sistema acadêmico e do alto nível de qualidade de sua elaboração intelectual, parte significativa da atividade intelectual não se articula com os principais processos de luta social e política experimentados no país. O potencial teórico existente na região pode ter um espaço importante na construção de alternativas pós-neoliberais se encontrar novas formas de articulação com os processos históricos contemporâneos.
Neste começo de novo século, a América Latina vive uma crise hegemônica de enormes dimensões, em que o velho tenta sobreviver, enquanto o novo encontra dificuldades para substituí-lo. As condições objetivas de esgotamento do modelo neoliberal estão dadas, mas países como Brasil, Argentina e Uruguai que, mesmo flexibilizando-o, mantiveram o modelo – dando continuidade à política financeira, ainda que não à política econômica –, conseguiram, cada um à sua maneira, retomar os ciclos expansivos de suas economias – coisa que os governos anteriores não haviam conseguido com a sua aplicação ortodoxa. O México, que ainda o aplica de forma ortodoxa, não logra avançar economicamente e o próprio Chile – caso exemplar de aplicação do modelo neoliberal – vê o ciclo de governos da Concertación se esgotar.
As dificuldades na construção de sujeitos sociais e políticos de superação do neoliberalismo respondem, em grande medida, pelos obstáculos que se colocam para a superação do modelo neoliberal. Quando se avançou na construção de novas formas de direção política e ideológica da luta antineoliberal, houve avanços significativos nessa direção. A resolução da crise hegemônica projetará o futuro do continente na direção que as lutas sociais, políticas e ideológicas definirem.
Emir Sader é sociólogo e cientista político
Notas
(1) CHOMSKY, Noam e HERMAN, Edward S. Manufacturing Consent: The Political Economy of Mass Media (Nova Iorque, Pantheon, 2002).